Somos o que nossos pais comeram
Estudos em epigenética continuam lançando luz sobre a importância do estilo de vida saudável – para nós e nossos descendentes
Por Rodrigo Mello Gomes, Portal Revista Vida e Saúde
O mundo parou devido à pandemia da covid-19 e ainda temos muito que aprender sobre ela; entretanto, tem sido observado que a obesidade é um dos fatores de risco para o agravamento do quadro clínico do infectado. Também não podemos esquecer que a obesidade é uma condição patológica que cresce ao redor do mundo, inclusive a obesidade infantil. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 340 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 19 anos estavam acima do peso ou obesas em 2016.
Certamente você já ouviu a expressão: “Você é o que você come”. Essa máxima está cada vez mais próxima do nosso cotidiano. Muitos estudos mostram os prejuízos de alimentos com teor elevado de sal, açúcares e gorduras. Assim, somos levados a acreditar que essas doenças crônicas começam apenas na fase adulta. Mas, atualmente, podemos criar uma nova máxima dizendo que “somos o que nossos pais comeram”. Para alguns, essa afirmação pode remeter a algo como “destino” ou até “castigo divino”; contudo, é o que tem sido demonstrado por muitos estudos. Existem evidências que apontam para uma relação casuística entre a nutrição materna e a saúde dos filhos. Pesquisas apontam que os cuidados maternos durante os primeiros mil dias de vida do bebê, sobretudo no que diz respeito à nutrição, são essenciais para o desenvolvimento saudável da pessoa ao longo da vida. O problema não está relacionado apenas com hábitos alimentares. Outros comportamentos de risco, como tabagismo, alcoolismo, exposição a contaminantes e até mesmo o estresse, ajudam a encorpar a lista.
Somos levados a entender que a vida de um ser humano começa no ato da concepção. Mas as células que nos deram origem (óvulo e espermatozoide) estiveram no corpo de nossos pais, onde podem ter sido expostas a agentes programadores. Não, não tem nada que ver com computadores. É um fato que nossas células podem, sim, ser programadas de certa forma.
A novidade está no que chamamos de epigenética – alterações estruturais do DNA, nosso código genético, e que podem ter consequências positivas (saúde) ou negativas (doença) que nos acompanham por toda a vida. Sendo assim, o que nossos pais fizeram pode ter promovido alterações epigenéticas que nos tornam mais suscetíveis a algum problema metabólico ou cardiovascular.
Vamos falar um pouco mais sobre epigenética. Você já teve a oportunidade de ver a beleza de algumas borboletas, e talvez já tenha pensado: como a lagarta se torna borboleta? Tudo se deve a uma incrível transformação chamada metamorfose. Entretanto, lagarta e borboleta são o mesmo indivíduo, com o mesmo material genético; a diferença se dá na forma como o código genético é expresso (lido). A lagarta expressa genes que lhe conferem a morfologia de lagarta, enquanto a borboleta expressa outros genes que lhe conferem a morfologia de borboleta. Essas mudanças morfológicas e fisiológicas das borboletas nós chamamos de “polifenismo” ou “plasticidade fenotípica”, mudanças do fenótipo sem mudanças do genótipo.
Outro exemplo de polifenismo é o das abelhas fêmeas. Os embriões que dão origem à abelha rainha e às operárias têm a mesma origem e o mesmo genótipo; assim, o que é diferente é apenas o fenótipo: uma se desenvolve para cumprir a função de reprodução (rainha), enquanto a outra se desenvolve para coletar néctar e produzir mel. O mais incrível é saber que o que promove essas diferenças fenotípicas tão profundas é o tipo de alimento com que foram alimentadas na fase larval – nesse caso a mudança fenotípica está ligada à nutrição; logo “a abelha é o que ela comeu na fase inicial da vida”.
Essa temática ganhou notoriedade a partir dos estudos do Dr. Nicholas Hales e do Dr. David Barker sobre a programação fetal. Em 1992, Hales e Barker propuseram que a desnutrição fetal aumenta a suscetibilidade para o diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares na vida adulta. Esses pesquisadores propuseram que o baixo peso ao nascer promovia um “thrifty phenotype” ou “fenótipo poupador”, que seria uma adaptação intrauterina à má nutrição. Essa, por sua vez, comprometia a fisiologia do ser mais tarde na vida, quando o suprimento de alimentos é normalizado. Pesquisas posteriores mostraram que o ganho de peso mais lento ou acelerado na infância aumenta o risco de diabetes tipo 2. Assim, o conceito original de “origens fetais” agora é expandido para Developmental Origens of Health and Disease – DOHaD, o estudo das origens do desenvolvimento de uma vida adulta saudável ou não, dependendo de como foi a fase inicial da vida.
Pesquisas envolvendo pessoas que estavam no útero durante condições de fome forneceram evidências das consequências que a nutrição materna durante a gestação e a lactação têm na saúde dos filhos na vida adulta. A fome holandesa “The dutch famine”, triste página da história da humanidade que ocorreu na parte ocidental da Holanda no final da Segunda Guerra Mundial, foi um período de fome severa (400-800 kcal/dia). Antes do início da fome, a população na área afetada da Holanda estava razoavelmente bem nutrida. A ocorrência dessa fome abrupta proporcionou uma oportunidade única para estudar retrospectivamente o efeito da nutrição materna na tolerância à glicose dos filhos, quando estudados na casa dos cinquenta anos de idade, em comparação com indivíduos nascidos no ano anterior à fome.
Realizar pesquisas sobre DOHaD com humanos não é algo simples, mesmo que ainda possamos observar muita miséria e fome ao redor do mundo. Por essa razão encontramos muitas pesquisas realizadas com animais de laboratório. Vamos ver o que podemos aprender com estudos realizados em experimentos com esses animais.
Programação epigenética
Talvez você esteja se perguntando: Como tudo isso começa? Vamos explicar melhor.
Outros vilões
É fundamental esclarecer que distúrbios nutricionais não são os únicos “vilões”. Também foi observado que a exposição materna ao tabaco e à nicotina durante a lactação programa a prole para a obesidade e distúrbios hormonais e metabólicos na idade adulta. Em outra pesquisa, mostramos os efeitos da exposição materna a um agrotóxico organofosforado chamado acefato, amplamente utilizado como inseticida na agricultura. Nesse estudo, mostramos que a exposição ao acefato durante a gravidez e lactação causa alterações no metabolismo materno e programa a prole para ser suscetível ao diabetes tipo 2 na idade adulta.
Outro fator programador é a exposição à poluição do ar. No ar que respiramos existem muitas partículas que chamamos de material particulado (MP) –“particulate matter” – formado por partículas menores que 10 µm de diâmetro. Nós que vivemos em grandes centros urbanos sabemos que o ar que respiramos não é puro. Um estudo mostrou que a exposição materna à MP, coletado em uma área urbana de Cotonou, Benin (África Ocidental), leva à intolerância à glicose, tanto no início da vida quanto na idade adulta. Assim, sugerimos que um ambiente com baixa qualidade do ar, principalmente onde o tráfego é denso, pode contribuir para o aumento da incidência de doenças metabólicas.
Vamos voltar a falar um pouco mais sobre nutrição. É notável que a obesidade infantil tem atingido proporções alarmantes; todavia, a puberdade também é uma fase de plasticidade fenotípica. Recentemente, mostramos que a ingestão elevada de sal na puberdade programa para problemas cardiovasculares na vida adulta.
Pesquisas
Recentemente mostramos que mães alimentadas com uma dieta que induziu obesidade materna, exclusivamente no período de lactação, tiveram filhotes com obesidade e distúrbios endócrinos na vida adulta. Nesse estudo usamos uma dieta na qual acrescentamos açúcar e leite condensado, aumentando significativamente o teor de açúcares. As mães foram alimentadas por 21 dias, período em que estavam amamentando os filhotes. Realizamos coleta de amostras de leite materno no qual constatamos aumento de açucares e gorduras. Dessa forma os filhotes foram amamentados com um leite contendo mais calorias. Já no sétimo dia após o nascimento observamos que esses filhotes eram mais pesados que os de mães alimentadas com uma dieta equilibrada. Esse quadro de sobrepeso permaneceu durante toda a vida dos filhotes, mesmo que tenham sido alimentados com ração balanceada dos 21 (desmame) aos 91 dias de vida (coleta das amostras). Vale ressaltar que ao longo de todo esse período eles apresentaram um quadro de hiperfagia (aumento da ingestão alimentar); isso ocorre porque perderam os efeitos anorexígenos (saciedade) que deveriam ser gerados pelos hormônios leptina e insulina. Foi na idade adulta (91 dias) que os dados causaram mais espanto: os filhos de mães obesas apresentaram grande aumento da gordura corporal, resistência à insulina e comprometimento da ação da leptina e da insulina no controle da ingestão alimentar e da gordura corporal.
Desprogramação
Caso você esteja pensando “estamos todos perdidos!”, acalme-se que não são apenas notícias ruins, temos evidências de que pode haver desprogramação. Inclusive são muitos estudos que mostram que o exercício físico é uma ferramenta muito eficaz em promover melhora ou até mesmo reverter os problemas causados por mudanças fenotípicas causadas nas fases iniciais da vida. Também temos fortes evidências dos benefícios programadores do exercício físico, que promove mudanças fenotípicas positivas, inclusive com efeitos de aumentar a resistência do organismo contra a instalação de alguns tipos de câncer.
Prezado leitor, imagino que você já tenha ouvido falar ou leu sobre os oito remédios da natureza. São recomendações da escritora norte-americana Ellen G. White. A autora recomenda que é fundamental para termos boa saúde e qualidade de vida buscar (1) uma alimentação saudável, (2) beber água pura, (3) respirar ar puro, (4) praticar exercício físico, (5) expor-se à luz solar, (6) repousar, (7) ter uma vida temperante, e (8) confiar em Deus. Gostaria de destacar, obviamente para contextualizar com tudo que vimos ao longo deste artigo, os quatro primeiros conselhos. Note que esses estão diretamente ligados a todos os transtornos que podemos observar dentro do conceito DOHaD. De fato, podemos afirmar que para escrever sobre assuntos tão atuais há mais de cem anos atrás, White estava bem à frente de seu tempo.
RODRIGO MELLO GOMES é doutor em biologia celular
Matéria original: https://www.revistavidaesaude.com.br/destaque/somos-o-que-nossos-pais-comeram/
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